quinta-feira, 8 de abril de 2021

ENTRE  MIADOS 


És tu o Gato das Botas? miou inquiridor o bichano branco-deslavado à aproximação do amarelado-sujo. Que não, respondeu este; estava à vista desarmada que vinha descalço até ao pescoço e sem más intenções. Ora, ora, volveu presunçoso o esbranquiçado; também eu estou de patas à vela mas sou o Gato dos Ténis de Marca. Não se convenceu o amarelado: um mentiroso de marca é o que tu me saíste! que eu sei que o Gato dos Ténis é preto e bem preto!

Moral da história: nunca se deve confiar em gatos daltónicos.


Alberto Oliveira

quinta-feira, 1 de abril de 2021

O  EQUÍDEO  ESTRAMBÓTICO


O seu primeiro dono baptizou-o de Ésquilo convicto que estava fadado para grandes voos nos hipódromos internacionais mas cometeu um erro crasso: contratou um jockey de reconhecidos méritos desportivos mas de conhecimentos culturais abaixo da média. Tantas vezes incitou Ésquilo a dar o seu melhor, gritando-lhe junto à orelha "Força Esquilo! Vamos Esquilo!" que um belo dia, o cavalo ferido na honra de animal de grande porte, se fartou de ser tratado como um pequeno mamífero roedor e não foi de modas; depois de dar dez velozes voltas a um circuito de treinamento, esperou que Jonas Jones desmontasse e com a pata esquerda traseira desferiu um valente coice na perna direita de Jonas.

Lê-se no Regulamento Ético Hípico que  "... jockey com osso partido deve ser abatido... ". E assim foi; cumprindo-se o preceituado no Regulamento, J. Jones foi abatido ao efectivo de montadores de cavalos de corrida, mas Ésquilo não se ficou a rir. Por comportamento anti- desportivo, nunca chegou a participar numa prova oficial.

Encontrei-o num estábulo de uma quinta para os lados da rua da Escola Politécnica , vivendo paredes meias com toda a sorte de quinquilharias de um antiquário reformado. Das pernas, nem pele nem osso; apenas uns tubos metálicos semelhantes a bastões de esquiar. Um cabo ligava-o do dorso à corrente eléctrica. Em cima de uma pequena mesa repousava um livro: "Prometeu Agrilhoado".


Alberto Oliveira.

domingo, 21 de março de 2021

RECEIO-ME


Receio-me

de não entender a voz do vento

de não conseguir agarrar o sol

de estar desapontado com a lua

da água não perceber o lamento

de não ouvir o falar do caracol

de não ter coragem de sair à rua

receio-me.

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Receios infundados, os dele. Que o vento, o sol, a água e o caracol, decidiram homenageá-lo afirmando a uma voz, que pessoa mais corajosa que ele ainda estaria para nascer. E a prova estava ali, à vista de todos, pois até saiu à rua. Num carro funerário que o levou para o Cemitério dos Prazeres.


Alberto Oliveira

sexta-feira, 19 de março de 2021

O  CIDADÃO  COMUM

Ele passeava-se na rua, anónimo, não se distinguindo dos outros passeantes. Era apenas mais um entre tantos. No trabalho diário limitava-se a fazer a sua parte como tantos outros faziam. Depois regressava a casa completando a rotina de mais um dia sem história e adormecia sem pesadelos nem sonhos.

Até que uma manhã, Firmino -- apesar de tudo tinha um nome, valha-nos isso! sem entender porque razão o fez, achou que era tempo de cometer uma ligeira extravagância. Ao trajo habitual, acrescentou um pormenor: enfiou na cabeça um chapéu de coco, herança de um bisavô, chefe de estação dos caminhos de ferro que conheceu a transição do regime monárquico para o republicano.

No metro de superfície percebeu que era alvo de olhares surpreendidos e de alguns sorrisos. Isso encorajou-o a sentar-se à secretária e começar a trabalhar com o chapéu na cabeça. Os risos e exclamações de espanto dos colegas ainda mais alento lhe deram; finalmente era alguém a quem davam a atenção que antes nunca tivera. Atendeu o telefone. O chefe do seu departamento chamava-o. Foi. Sem tirar o chapéu da cabeça. "Ó Firmino, tire o raio do chapéu de coco! Chega de brincadeira!". Firmino argumentou que o chapéu era seu e usava-o, tal como usava o casaco e as calças e se não o queriam com ele na cabeça, porque não trabalhar todo nu?! Não cedeu e foi suspenso.

 Em casa escreveu a marcador preto e em maiúsculas num pedaço de cartão "IMPEDIDO DE TRABALHAR POR USAR CHAPÉU DE COCO" e no dia seguinte postou-se à porta da empresa com o cartaz e de chapéu de coco na cabeça.

O movimento que se gerou em sua defesa foi de tal ordem que conseguiu arranjar emprego numa fábrica de chapéus de chuva.


Alberto Oliveira

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A  PRIMEIRA  SÍLABA


João apaixonou-se por Joana e Joana apaixonou-se por João precisamente no mesmo dia, à mesma hora, em igual minuto e em idêntico segundo. Nunca o propalado amor à primeira vista aconteceu tão em simultâneo e preciso, qual relógio suíço mais publicitado deste mundo ou de qualquer outro.

Bastou um olhar -- dois, porque se descobriram em igual momento, para perceberem que desde logo a atracção tomou conta das suas vidas e a partir daí nada seria como antes. 

As primeiras palavras foram naturalmente proferidas em uníssono, "gosto muito de ti" e logo de seguida falou mais alto a curiosidade, "como te chamas?", para decidirem de imediato que se tratariam apenas pela primeira sílaba de ambos os seus nomes: "Jo". Ficaram a saber depois que tinham os mesmos gostos. Ele adorava sopa de nabiças, ela era doida por nabiças na sopa. Ele gostava de praia, ela detestava o campo. Ele amava fazer amor mal abria os olhos e ela abria os olhos mal acordava. Ele devorava os livros de Saramago, ela já tinha lido o Memorial do Convento oito vezes. Ele era adepto incondicional do Benfica, ela tinha uma cadela chamada Vitória. E por aí fora.

Um belo dia, Jo chegou mais cedo do trabalho e encontrou Jo na cama com o melhor amigo do casal, Jorge de seu nome, mas que por brincadeira e pela amizade que ambos tinha por ele, também o tratavam po Jo.

Jo (de Joana), jurou por todos os Santos (São Cais do Sodré incluído), que tudo não passou de uma trágica confusão. Em lágrimas, explicou que quando regressou a casa, encontrou já deitado (pensando tratar-se de Jo de João), Jo de Jorge e apesar de admirada por o seu amado ter chegado mais cedo, não foi de modas; meteu-se também na cama. Lembra-se até de ter dito na altura "Que bom! O meu Jo já cá está! ´bora lá brincar um bocadinho!" 

A partir desse dia, João nunca mais se apaixonou por mulheres cujo nome a primeira sílaba fosse Cor. De Cornélia.


Alberto Oliveira.

domingo, 31 de janeiro de 2021

O  ANTÍDOTO


Num pequeno país não muito distante de outros países que olhavam para esse país com alguma desconfiança vá lá saber-se porquê -- de resto, eventuais questões de pormenor técnico nada de relevante acrescentarão a este conto baseado em factos que poucos acreditarão na sua veracidade, vivia um jovem que demonstrou precocemente aptidões fora do comum e que o poderiam levar a cometer grandes voos no campo da tecnologia e que por tal, lhe foram oferecidas todas as possibilidades de.

Ao completar dezassete anos, fazendo jus aos que nele acreditaram, o jovem tinha conseguido criar o RB 10G, um nanophone que.

A partir desse momento a vida de Raimundo Barbeitos mudou radicalmente porque.

A população desse pequeno país tinha finalmente um telefone à sua dimensão geográfica e apesar do custo exorbitante, adquiriu-o em massa e dum modo geral em suaves prestações de duzentos euros mensais, vezes duzentos e quarenta meses. Era comum, responder à pergunta "O que almoçaste hoje?" com "Comi uma sopa. Mas tenho um RB 10G !"

Raimundo andava nas nuvens e não lhe sobrava tempo para acudir a todas as solicitações que lhe chegavam diariamente exigindo a sua presença em conferências, debates, colóquios ou entrevistas, nem para gastar os royalties que se avolumavam sem parança na sua conta bancária graças à sua criatividade..

Até ao dia em que um anónimo cidadão, de avançada idade a cumprir isolamento em casa por teste positivo à Covid 19 e com enormes dificuldades de visão, engoliu o seu RB 10G em vez da habitual pílula para a tensão arterial e apenas deu por isso quando a sua filha lhe telefonou e ouviu surpreendido, os acordes da marcha "Cheira a Lisboa" vibrando nas suas entranhas. Em pânico, chamou o 113. Após o curto tempo em que ficou na ambulância a aguardar entrada nas urgências -- cerca de quinze dias, virologistas de diversas correntes de opinião e políticos em transe economicista e depois de minuciosos exames e acesa discussão, decidiram que o ancião tinha ficado imune à virose após a ingestão do nanophone.

Face a estes incríveis acontecimentos, é bem provável que Raimundo Barbeitos esteja bem posicionado para vencer este ano o Nobel da Literatura.


Alberto Oliveira


 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O  DRONE


Quando o viu já era tarde demais e da noite. Um zingarelho voador como aquele sem uma única luz avisadora a bordo, dificilmente poderia ser lobrigado a tempo no céu escuro de Janeiro, voando célere e apontado à sua pessoa. Uma cobardia infame, vociferou ele , braços no ar, vendo afastar-se a coisa depois dela ter feito o trabalho sujo. Dali para a frente nada seria como dantes; não haveria cão nem gato que não ficasse a par dos factos mais íntimos da sua existência. O casamento relâmpago  -- pela Igreja do Décimo Terceiro Mês, com Clarissa de esperanças em muitos filhos-abono-de-família após um tórrido romance com aquela que viria a ser a sua futura sogra, a deserção do Exército quando teve notícia que ia ser mobilizado para combater uma praga de mosquitos-de-asa-rosa no rio Tua, a fuga desordenada para o Curdistão onde se estabeleceu com um negócio de amendoins torrados em fogo-posto e o regresso à Malveira depois de um golpe militar de tortas progressistas. Dos devaneios com a sua secretária Flor de Pinho, do fervor bovino pelo Estrelas da Lezíria Futebol Clube e da rematada taradice pantagruélica por tartes de espinafre coreanas.

Entrou em casa e rasgou em mil pedaços o cartão de associado do Clube de Aeromodelismo Asas de Grilo.


Alberto Oliveira